Esferocitose

Esferocitose Hereditária: Uma Revisão Abrangente


Introdução

A esferocitose hereditária (EH) é uma doença hematológica hereditária caracterizada por anemia hemolítica crônica devido à destruição prematura das hemácias anormais pelo sistema reticuloendotelial, principalmente no baço. É a anemia hemolítica hereditária mais comum em populações de origem europeia, com uma incidência estimada de 1 em cada 2.000 a 5.000 indivíduos. Apesar de ser uma doença conhecida há mais de um século, continua sendo um desafio diagnóstico e terapêutico em muitos casos.

Este artigo tem como objetivo fornecer uma revisão abrangente sobre a esferocitose hereditária, abordando sua definição, fisiopatologia, etiologia, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento, complicações e prognóstico. Além disso, serão comparadas as características da EH com outras doenças hemolíticas hereditárias, visando destacar as particularidades de cada uma e facilitar o entendimento para fins clínicos e acadêmicos.


Definição e Fisiopatologia

A esferocitose hereditária é definida como uma anemia hemolítica causada por defeitos nas proteínas estruturais da membrana dos eritrócitos, levando à formação de esferócitos, que são hemácias esféricas com menor área de superfície em relação ao volume. Essa alteração morfológica resulta em uma menor flexibilidade celular, dificultando a passagem das hemácias através dos sinusoides esplênicos e promovendo sua destruição precoce.

As principais proteínas da membrana eritrocitária envolvidas na EH são:

Espectrina: Principal componente do citoesqueleto da membrana, responsável pela elasticidade e estabilidade mecânica da célula.

Anquirina: Conecta a espectrina à banda 3, estabilizando a interação entre o citoesqueleto e a bicamada lipídica.

Banda 3: Proteína transmembrana que atua como âncora para o citoesqueleto e como transportador de ânions.

Proteína 4.2: Estabiliza a interação entre a anquirina e a banda 3.

As mutações genéticas que afetam essas proteínas resultam em uma fragilidade osmótica aumentada e em uma vida útil reduzida das hemácias.


Etiologia

A EH é geralmente herdada de forma autossômica dominante, mas formas autossômicas recessivas e mutações de novo também são descritas. As mutações genéticas podem ser heterogêneas, afetando diferentes genes que codificam as proteínas da membrana eritrocitária.

Estudos genéticos identificaram mutações nos seguintes genes:

ANK1: Codifica a anquirina.

SPTA1 e SPTB: Codificam as cadeias α e β da espectrina, respectivamente.

SLC4A1: Codifica a banda 3.

EPB42: Codifica a proteína 4.2.

A heterogeneidade genética contribui para a variabilidade clínica observada entre os pacientes com EH.


Manifestações Clínicas

A gravidade dos sintomas na EH varia amplamente, desde formas assintomáticas até anemia hemolítica grave. As principais manifestações clínicas incluem:

Anemia: Cansaço, palidez, dispneia aos esforços e taquicardia.

Icterícia: Pele e mucosas amareladas devido ao acúmulo de bilirrubina não conjugada.

Esplenomegalia: Aumento do baço palpável em exame físico, podendo causar desconforto abdominal.

Cálculos biliares pigmentares: Devido ao excesso de bilirrubina indireta, aumentando o risco de colelitíase em jovens.

Crises aplásticas: Supressão transitória da eritropoiese, geralmente desencadeada por infecção pelo parvovírus B19, levando a uma queda abrupta na contagem de hemácias e agravamento da anemia.

Úlceras cutâneas: Mais raras, devido à má perfusão tecidual.


Diagnóstico

O diagnóstico da EH envolve uma combinação de achados clínicos, laboratoriais e, em alguns casos, testes genéticos.

  1. História Clínica e Exame Físico

Anemia hemolítica crônica, icterícia intermitente, história familiar positiva.

Esplenomegalia palpável.

  1. Exames Laboratoriais

Hemograma completo: Anemia normocítica ou levemente microcítica, reticulocitose como resposta à anemia hemolítica.

Esfregaço de sangue periférico: Presença de esferócitos (hemácias sem palidez central).

Teste de Coombs direto: Negativo, diferenciando de anemias hemolíticas autoimunes.

Fragilidade osmótica aumentada: Hemólise das hemácias em soluções hipotônicas.

Bilirrubina indireta elevada, lactato desidrogenase (LDH) aumentada, haptoglobina diminuída: Indicativos de hemólise.

  1. Testes Especiais

Eosin-5-maleimida (EMA) binding test: Fluorocitometria para avaliar a ligação de EMA às proteínas da membrana, reduzida na EH.

Eletroforese de proteínas da membrana: Identifica deficiências quantitativas de proteínas específicas.

Testes moleculares: Sequenciamento genético para identificar mutações causadoras.


Tratamento

O tratamento da EH depende da gravidade dos sintomas e da idade do paciente.

  1. Esplenectomia

Indicação: Em pacientes com anemia hemolítica moderada a grave que impacta a qualidade de vida.

Benefícios: Reduz a hemólise, aumenta a contagem de hemoglobina e melhora os sintomas.

Considerações: Preferencialmente adiada até após os 5 anos de idade devido ao risco de infecções graves em crianças pequenas.

Esplenectomia parcial: Opcional em crianças para preservar parte da função imunológica do baço.

  1. Colecistectomia

Indicada em pacientes com cálculos biliares sintomáticos.

Pode ser realizada simultaneamente à esplenectomia.

  1. Suplementação de Ácido Fólico

Recomendada para todos os pacientes para apoiar a eritropoiese aumentada.

  1. Vacinações e Profilaxia Antibiótica

Vacinas contra organismos encapsulados: Pneumococo, meningococo, Haemophilus influenzae tipo b.

Profilaxia antibiótica com penicilina em crianças após esplenectomia.

  1. Transfusões de Sangue

Utilizadas em crises aplásticas ou anemia grave não controlada.


Complicações

Infecções graves: Especialmente por bactérias encapsuladas após esplenectomia.

Crises hemolíticas: Aumento súbito na hemólise devido a fatores estressores.

Crises aplásticas: Supressão da medula óssea, geralmente viral.

Cálculos biliares: Podem levar a colecistite aguda ou pancreatite.

Hemosiderose: Acúmulo de ferro devido a hemólise crônica e transfusões.


Prognóstico

O prognóstico da EH é geralmente bom com tratamento adequado. A esplenectomia corrige a anemia e melhora a qualidade de vida na maioria dos casos. No entanto, pacientes devem ser monitorados regularmente para detectar e tratar complicações precocemente.


Comparativo com Outras Doenças Hemolíticas


  1. Eliptocitose Hereditária (EH)

Definição: Doença hereditária caracterizada por hemácias em forma de elipse ou oval.

Etiologia: Defeitos nas proteínas da membrana, principalmente espectrina α ou proteína 4.1.

Manifestações Clínicas: Geralmente assintomática; anemia leve a moderada em casos graves.

Diagnóstico: Esfregaço periférico com eliptócitos (>25% das hemácias).

Tratamento: Esplenectomia em casos sintomáticos.


  1. Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD)

Definição: Doença ligada ao X, causando deficiência da enzima G6PD, importante na via das pentoses fosfato.

Etiologia: Mutações no gene G6PD.

Manifestações Clínicas: Hemólise aguda após exposição a agentes oxidantes (fármacos, infecções, favas).

Diagnóstico: Medição da atividade enzimática da G6PD.

Tratamento: Evitar agentes desencadeantes; transfusões em casos graves.


  1. Anemia Falciforme

Definição: Doença autossômica recessiva causada por mutação na hemoglobina β, resultando em hemoglobina S.

Etiologia: Substituição do ácido glutâmico por valina na posição 6 da cadeia β-globina.

Manifestações Clínicas: Crises vaso-oclusivas, dor, infecções, danos a órgãos.

Diagnóstico: Eletroforese de hemoglobina, teste de falcização.

Tratamento: Hidroxiureia, transfusões, transplante de medula óssea.


  1. Talassemias

Definição: Grupo de doenças genéticas com produção reduzida ou ausente de cadeias globínicas α ou β.

Etiologia: Deleções ou mutações nos genes das globinas.

Manifestações Clínicas: Anemia microcítica hipocrômica, esplenomegalia, deformidades ósseas.

Diagnóstico: Eletroforese de hemoglobina, hemograma.

Tratamento: Transfusões regulares, quelantes de ferro, transplante de medula óssea.


Diferenças Principais

Mecanismo de Hemólise:

Esferocitose Hereditária: Defeitos estruturais na membrana levam à destruição esplênica.

G6PD: Incapacidade de lidar com estresse oxidativo causa hemólise intravascular.

Anemia Falciforme: Polimerização da HbS sob desoxigenação causa deformação celular e oclusão vascular.

Talassemias: Desequilíbrio na produção de globinas leva à hemólise e eritropoiese ineficaz.

Transmissão Genética:

Esferocitose Hereditária e Talassemias: Autossômicas, dominantes ou recessivas.

G6PD: Ligada ao X, afetando principalmente homens.

Anemia Falciforme: Autossômica recessiva.

Manifestações Clínicas Específicas:

Esferocitose Hereditária: Icterícia intermitente, cálculos biliares precoces.

G6PD: Hemólise episódica após exposição a desencadeantes.

Anemia Falciforme: Crises dolorosas, síndrome torácica aguda.

Talassemias: Deformidades faciais, retardo de crescimento.

Diagnóstico Diferencial:

Teste de Coombs: Negativo na EH e nas outras doenças hereditárias, positivo na anemia hemolítica autoimune.

Esfregaço Periférico: Esferócitos na EH, eliptócitos na eliptocitose, células falciformes na anemia falciforme.

Eletroforese de Hemoglobina: Normal na EH, anormal na anemia falciforme e talassemias.


Importância do Diagnóstico Diferencial

O diagnóstico preciso é crucial para o manejo adequado e prognóstico dos pacientes. Por exemplo, a esplenectomia é eficaz na EH, mas não tem benefício na anemia falciforme ou na deficiência de G6PD. Além disso, medidas preventivas específicas, como evitar fármacos oxidantes na G6PD, são essenciais para prevenir crises hemolíticas.


Conclusão

A esferocitose hereditária representa um desafio clínico que requer um alto índice de suspeição e uma abordagem diagnóstica cuidadosa. O entendimento detalhado de sua fisiopatologia e diferenças em relação a outras anemias hemolíticas hereditárias é fundamental para o manejo eficaz. O tratamento individualizado, que pode incluir esplenectomia e suporte hematológico, permite que a maioria dos pacientes leve uma vida normal. A pesquisa contínua sobre os mecanismos moleculares da EH e o desenvolvimento de novas terapias podem melhorar ainda mais o prognóstico desses pacientes no futuro.


Referências

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  5. Narla J, Mohandas N. Red cell membrane disorders. Int J Lab Hematol. 2017;39 Suppl 1:47-52.

Palavras-chave: Esferocitose hereditária, anemia hemolítica, hemácias, membrana eritrocitária, esplenectomia, diagnóstico diferencial.